sábado, 10 de julho de 2010

Os lugares da educação na sociedade contemporânea

Os lugares da educação na sociedade contemporânea



Todas as sociedades dedicam-se à educação de seus pares, especialmente à educação de suas crianças e jovens, atendendo a uma orientação de caráter tão intuitivo quanto a que provoca o desenvolvimento da fala.

Contudo, a educação e a fala sustentam-se sobre bases significativamente distintas: no desenvolvimento da fala, atuam fatores absolutamente alheios à consciência, não sujeitos a condicionamentos externos à própria mente, permitindo que crianças de todo o planeta se habilitem à comunicação verbal em idade muito precoce; já a educação, embora parta de orientações universais, segue, ao mesmo tempo, fatores universais e individuais, quase sempre a partir de ações conscientes e direcionadas a fins determinados. Não se pode, portanto, definir a priori a forma como as várias sociedades educam, ou devam educar, seus membros, pois cada uma delas tem uma compreensão particular e única acerca das intenções e dos fins subjacentes às ações educativas, fato que assegura ao homem uma pluralidade ímpar entre as demais espécies da natureza. O mundo moderno, todavia, introduziu nos últimos seiscentos anos um conceito que viria a transformar de modo sui generis a relação do homem com a pluralidade, qual seja, o de “urbanidade civilizada”, esta na qual todas as nações buscam introduzir-se e que é parâmetro mundial para a avaliação da qualidade de vida humana. Embora as nações do planeta ainda se diferenciem muitíssimo quanto ao nível de aproximação a este parâmetro de urbanidade civilizada, todas, sem exceção, esforçam-se para, de algum modo, conformar-se a ele. O sentido geral da educação nestas sociedades está diretamente ligado à intenção coletiva de assegurar a inclusão crescente de todos os homens ao modelo urbano compreendido como fonte e condição ideal de conforto, felicidade e prosperidade.



A educação, assim vinculada ao conceito de “urbanidade civilizada”, agrega valores bem mais amplos do que a mera adaptação ao meio para fins de superação de dificuldades imediatas de sobrevivência. Educar passa a ser, antes de tudo, crer na possibilidade de vir a ser feliz no contexto de um mundo civilizado, à luz da cultura moderna. Isto, por conseguinte, vincula-se a um projeto de ordem social e não a uma ação centrada em sujeitos individuais, com objetivos particulares e dissolvidos pela imediata satisfação de desejos pessoais. Vem a ser no interior desta concepção de uma educação civilizatória que a escola ou, a educação escolar, ou ainda, a educação formal se institui como instrumento gerador de homens civilizados. O sentido e a razão de ser da escola, no entanto, não se constrói dentro de si própria, vindo, isto sim, de fora para dentro, de uma relação de coerência que se estabelece entre o desejo coletivo de construir uma sociedade civilizada e as práticas sociais que incorporam homens civilizados. A educação escolar é não mais do que uma extensão do modelo de educação adotado pela sociedade em todas as suas esferas e modos de ação.



Cabe, então, problematizar o conceito social que se tem da escola contemporânea, perguntando-se a quem cabe propriamente a educação das crianças e dos jovens: à escola ou à sociedade? Esta questão toma vulto neste início de século, à medida que se torna crescente a pressão de todos os segmentos da sociedade sobre a escola, exigindo desta uma posição firme e objetiva na superação de um aparente despreparo do povo para dar continuidade ao projeto da urbanidade civilizada. Crescentemente, a escola vem passando a ser compreendida como o depositário social da ordem pública, do qual se pode extrair a paz e a felicidade para todos, induzindo-se a crer que a educação seja uma responsabilidade sua, não mais da sociedade como um todo. Todavia, a percepção das crianças e dos jovens acerca do papel que a escola exerce em suas vidas é cada vez mais opaca, limitando-se, na maioria das vezes, à satisfação de um rito social que habilita ao mercado de trabalho, ou, em algumas camadas sociais, aos exames vestibulares. E a culpa disto segue sendo imputada ao professor, que, conforme se diz, não vem cumprindo seu papel de “educar” os cidadãos e, sobretudo, não vem encontrando a necessária sintonia entre sua atividade docente e a formação para o exercício da cidadania, expressão que já se tornou um clichê na educação contemporânea.



Educar para a cidadania implica imputar às ações praticadas em direção ao outro uma clara objetividade com relação àquilo que se compreende em cada sociedade como padrão de bem-estar. Deste modo, ao se determinar à escola o papel de “preparar” as crianças e os jovens para o exercício da cidadania, compreende-se que o entorno social destas crianças e jovens não mais reúne evidências que permitam à coletividade co-participar deste processo de preparação. É claro que o exercício da cidadania não se resume à aplicação daquilo que se constrói na educação formal; conseqüentemente, é igualmente claro que a escola não é capaz de cumprir tal missão inclusiva que lhe vem sendo imputada, quando a própria sociedade como um todo exime-se de assumir seu verdadeiro papel como educadora, não assinalando a orientação geral do que vem, de fato, a ser um cidadão integrado à cidadania. O lugar da educação na sociedade contemporânea tornou-se profundamente ambíguo, ao passo que o lugar da escola, mistificado, ora como alegoria da construção humana, ora como último reduto de um ideal de sociedade que se perdeu na história recente da humanidade.



Em conseqüência disto, a imensa maioria das escolas tornou-se o lugar da frustração, onde professores e alunos amargam dia a dia uma profunda sensação de fracasso, que melhor se traduziria como perplexidade, perante as antagônicas vozes que os julgam, do lado de fora da escola. Quando não estão a par de todos os conteúdos programáticos tradicionalmente arrolados na cultura escolar, são criticados por isso. Quando conhecem bem tais conteúdos, também podem ser criticados, por não saberem o que fazer de tais conteúdos na vida em sociedade. Mesmo adotando os valores sociais arrolados no convívio escolar, muitas vezes se sentem paralisados diante da selvagem trama de valores que vigora nas ruas. Tamanha perplexidade não há de se resolver na escola, a partir de um movimento solitário de professores, pois que a problemática da educação formal não é causa e sim, conseqüência de fatores extra-escolares, oriundos da desordem provocada pelas transformações ocorridas na sociedade ao longo dos últimos vinte anos.



Não se vá compreender aqui “desordem” como sinônimo de desorganização, numa interpretação que reduziria a solução do problema a uma mera questão de restabelecimento da ordem que mantivera o passado, aparentemente, organizado. A desordem social que vivemos hoje é um processo muito mais complexo, de base revolucionária e irreversível, cuja incidência dá-se sobre as próprias bases da sociedade moderna, em decorrência de três fatores: o primeiro fator mais eloqüente, embora mais frágil é relativo à perda de confiança no modelo social instaurado pela cultura científica na Idade Moderna. Trata-se de um fator relativamente frágil, à medida que superável através de novas ideologias que mascarem os bolsões de excluídos sociais que ainda acolhem a grande maioria da população mundial, a exemplo do que se deu ao longo da maior parte do século passado; o segundo fator, este sim de caráter imperativo no processo de desorganização social, constitui-se com as tecnologias hipertextuais de informação, cuja estrutura autorizou o ingresso na cultura científica das massas não escolarizadas, bem como de todas as sociedades de cultura preponderantemente oral, dando-lhes visibilidade e auto-confiança; o terceiro fator decorrente do anterior – resulta na dramática transformação nos meios de produção, alterando radicalmente não apenas a relação da humanidade com o trabalho mas, especialmente, o enquadramento social das pessoas de uma hora para outra, a escola não mais era apontada como a sede da formação para o trabalho. Dessacralizavam-se, deste modo, ao mesmo tempo, os princípios morais e éticos de todo um modelo de sociedade, provocando-se a perda dos parâmetros com os quais se viria a definir o sentido da educação.



Os processos que até então se aplicavam ora consciente, ora inconscientemente na formação das crianças e dos jovens perderam o sentido de legitimidade social, demonstrando-se, até mesmo para as crianças mais jovens, desnecessários ou incoerentes. Em países como o Brasil em que o aparente fracasso escolar contrasta com a destreza com que seus jovens se apropriam das tecnologias hipertextuais, a desordem provocada pela pós-modernidade traz à tona uma questão há muito calada em seu povo: há inteligência além dos muros das sociedades cartesianas. A histórica tradição brasileira de amorenar, parafraseando Darcy Ribeiro, as práticas e instituições sociais reflete bem a vocação de nossa sociedade por uma relação anárquica com a estrutura social fundada no modelo europeu. O componente anárquico da sociedade brasileira, uma de suas mais intrínsecas propriedades culturais, é todavia fonte de grande incoerência, já que, por força do papel que é assumido pelo povo perante suas pseudomatrizes culturais na Europa, tende a ser desprezada e ridicularizada como um bem enviesado, sem valor. Apesar disto, porém, é no interior dos processos sociais produzidos nesta cultura anárquica que o povo brasileiro se forma e é neles que este identifica a legitimidade de uma formação para a cidadania. Curiosamente, entretanto, os mais legítimos processos educacionais vigentes na sociedade brasileira não são arrolados como tal pelo próprio povo, que tende a transferir a função “educativa” para a escola (neste caso, com papel meramente aculturante com relação a uma suposta cultura superior), na expectativa de que esta cuide de formar os cidadãos civilizados do futuro.



Discutir a questão da educação nos países, à beira ou ao fundo, do Terceiro Mundo implica analisar em profundidade as intenções e os efeitos dos processos educacionais que, efetivamente, concorrem para a formação do povo e que, por conseguinte, concorrem para defini-lo como sujeito social singular, com perspectivas próprias de cidadania. Em que pese tratar-se de uma tarefa para todas as esferas da sociedade, um bom começo de discussão já se pode dar através da reunião dos agentes que mais imediatamente concorrem na formação das crianças e dos jovens: a família, a escola e os agentes de integração comunitária. Um primeiro movimento neste sentido consiste na superação dos sentimentos de fracasso que cada um destes segmentos tem procurado justificar pela ação dos demais, objetivando-se até onde cada um deles pode (e deve) ir, bem como o lugar que exercem na educação das crianças e dos jovens, individualmente e em conjunto. A integração desses três agentes de formação no entorno dos processos educacionais resulta na base com que se edifica o projeto político-pedagógico da educação, não restrito à escola, coordenado pela intenção coletiva de promover a educação no outro, sejam alunos, seus responsáveis, professores ou agentes sociais.


Luiz Antonio Gomes Senna*

Nenhum comentário:

Postar um comentário